Trombofilias para o médico generalista
Saiba como identificar as variadas situações em que eventos tromboembólicos ocorrem e os casos que necessitam acompanhamento especializado
Os eventos tromboembólicos (venosos ou arteriais) são, em sua maioria, causados por uma sucessão de eventos e adição de fatores, sejam eles hereditários ou adquiridos.(1)
Como base de sua fisiopatologia, ainda devemos lembrar da consagrada Tríade de Virchow a fim de compreender os mecanismos que causam tais eventos, que é definida pela combinação dos seguintes fatores: Lesão endotelial, hipercoagulabilidade e estase sanguínea. Assim, as patologias que cursam com aumento de uma ou mais dessas três alterações fundamentais, podem levar à trombose.(1)
Nas tromboses arteriais, a lesão endotelial tem maior relevância. Já as venosas têm maior predominância dos outros dois fatores. (1)
Por ser multifatorial, a preponderância entre os fatores de risco determinará se a trombose pode ser dita provocada ou espontânea.
TROMBOSE PROVOCADA
A trombose pode ser considerada provocada quando há, na história clínica, indício de agravo agudo que esteja relacionado com a sua patogênese. Nestes casos, o principal fator de risco para sua ocorrência é considerado transitório: cirurgias de grande porte, trauma, evento agudo de hospitalização grave, ou imobilização prolongada. Em geral, não necessitam maior investigação, a não ser que haja na história clínica, elementos que indiquem maior risco de recorrência. (2)
Avaliando eventos venosos espontâneos
Se não for identificado um fator causal relevante após uma avaliação clínica, deve ser considerada a investigação e esta deve ser iniciada com uma minuciosa história clínica, com atenção aos seguintes pontos:
- História familiar
- Comorbidades prévias (incluindo Neoplasias)
- Obesidade
- Idade
- Tabagismo
Pacientes com história familiar relevante, sobretudo em parentes de primeiro grau, bem como a ocorrência de eventos em idade jovem (< 50 anos), necessitam avaliação para causas hereditárias, sendo as principais:(1)
- Mutação do gene da Protrombina (variante G20210A)
- Presença do Fator V de Leiden
- Deficiência de Proteína S
- Deficiência de Proteína C
- Deficiência de Antitrombina III
Entretanto, o profissional deve se atentar para o fato de haver consumo dos três últimos durante a fase aguda da trombose, não sendo indicada sua coleta neste momento.
Causas adquiridas
No caso de trombose associada ao uso de anticoncepcionais orais ou terapia de reposição hormonal, nota-se um aumento do risco relativo de três a cinco vezes em relação à população em geral. Porém, uma vez que a incidência de trombose em mulheres jovens é baixa, o risco absoluto de TEV em usuárias de anticonceptivos orais é de aproximadamente 0,06 por 100 comprimidos-ano.
O risco absoluto é maior entre mulheres com condições associadas, como trombofilias e outros fatores de risco, como tabagismo e obesidade. (3) Portanto, pacientes em uso destes métodos contraceptivos, sem que haja um forte fator desencadeador adicional, também devem ser investigados para trombofilias.
As tromboses também podem ser classificadas e ter sua investigação direcionada pelo sítio de acometimento. Os sítios mais comuns de acometimento por TEV são as veias distais e a embolia pulmonar. (4) Tromboses que acometem sítios não usuais também merecem especial atenção, como as tromboses cerebrais e em sítios esplâncnicos.
Pacientes com trombose em sítios atípicos, além dos fatores hereditários já citados, necessitam de investigação para causas adquiridas, como as doenças mieloproliferativas (em especial a Policitemia Vera) e outras doenças hematológicas, como a Hemoglobinúria Paroxística Noturna.
Outra causa adquirida de especial relevância é a Síndrome do Anticorpo Antifosfolípide, podendo ser primária ou secundária à doença autoimune. Nesta condição clínica, é preciso atenção para a anamnese (sobretudo obstétrica) e para a presença de tromboses venosas e/ou arteriais, envolvendo sítios incomuns. Para esta investigação utilizamos as dosagens de Anticoagulante Lúpico, Anticorpo anti-beta2 glicoproteína e os anticorpos Anti-cardiolipina[RDRM1]. (2)
TROMBOSES ARTERIAIS
As tromboses arteriais, por terem o mecanismo fisiopatológico mais relacionado à lesão endotelial, têm como causas principais as doenças que cursam com aterosclerose. Sendo assim, é necessária investigação que contemple os fatores de risco cardiovascular (hipertensão, diabetes mellitus, tabagismo, dislipidemia) e, a depender da história clínica, podem ser considerada investigação para vasculites, doença de Behçet e a Síndrome do Anticorpo Antifosfolípide. (1)
Quando indicar anticoagulação perene?
Após o evento agudo, deve-se iniciar o tratamento com terapia anticoagulante. A terapia inicial deve ser instituída por um prazo de 3 a 6 meses. A partir deste ponto, deve ser considerada a interrupção da terapia ou a manutenção como profilaxia secundária, de forma indefinida. Em pacientes com evento trombótico provocado, com fatores de risco temporários bem estabelecidos, a terapia pode ser interrompida após a terapia inicial.
Porém, muitos pacientes com evento trombótico provocado por fatores de risco crônicos, bem como pacientes com trombose não provocada, devem continuar a terapia anticoagulante por período indefinido para prevenção secundária após a conclusão do tratamento primário, com especial atenção aos pacientes com manifestações graves, tromboses extensas e em sítios não habituais.(5) Isso significa que, mais do que a presença de trombofilia, o fator de maior determinação na indicação reside na natureza do evento, se provocado ou não, e se é possível retirar o fator de risco determinante para sua ocorrência. (2)
Em pacientes com indicação de terapia anticoagulante perene, deve-se sempre avaliar o risco de sangramento envolvido, a fim de avaliar a interrupção quando o risco de sangramento superar o risco de recorrência da trombose.
Atualmente, existem ferramentas prognósticas e escores (por exemplo, DASH score), criados para tentativa de avaliação de retirada de anticoagulação. Entretanto, seu uso não é recomendado como única ferramenta para embasamento de conduta, já que ainda apresentam baixo nível de evidência para este fim. (5)
Quando encaminhar para o hamatologista?
Em geral, pacientes com tromboses provocadas e sem fatores de risco adicionais verificados em história clínica não necessitam de encaminhamento ao Hematologista.
Entretanto, após investigação inicial com evidência de trombose não provocada, tromboses de sítios atípicos, fatores de risco hereditários ou adquiridos para trombofilia e pacientes com alto risco de recorrência e anticoagulação perene necessitam de uma consulta e seguimento especializados.
SOBRE A AUTORA
Luciana Garcia Di Paolo
CRM-SP 182.843
Médica formada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Especialista em Clínica Médica pela Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP). Médica Residente em Hematologia e Hemoterapia na Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP).
Referências bibliográficas:
1. Hoffbrand, A. V, P. A. H. Moss, Fundamentos em Hematologia de Hoffbrand, 7ª Edição. Porto Alegre : Artmed, 2018. 2. Conors, J M Thrombophilia Testing and Venous Thrombosis, N Engl J Med 2017;377:1177-87. DOI: 10.1056/NEJMra1700365: 3. Andrea H R Combined estrogen-progestin contraception: Side effects and health concerns, UpToDate, 2022 4. Douglas P. S. Overview of the causes of venous thrombosis. UpToDate, 2022 5. Ortel, T. L. et al, American Society of Hematology 2020 guidelines for management of venous thromboembolism: treatment of deep vein thrombosis and pulmonary embolism. Blood Adv 2020; 4 (19): 4693–4738. doi: https://doi.org/10.1182/bloodadvances.2020001830